Percorridos, diletíssimos, no sermão anterior, os fatos que precederam a prisão do Senhor, resta-nos agora, com o auxílio da graça de Deus, dissertar, como prometemos, sobre o próprio desenrolar da Paixão. Pois tendo o Senhor tornado bem claro, pelas palavras da sua sagrada oração,[1] que existiam n’Ele de modo sumamente verdadeiro e pleno as naturezas humana e divina, mostrando assim de onde Lhe vinha o não querer sofrer e de onde o querer; tendo repelido de si o temor da fraqueza e confirmado a grandeza da força, retomou o sentimento da sua eterna disposição[2] e, pelo ministério dos judeus, lançou ao feroz Diabo a forma do servo[3] que nada possuía de pecado, para que a causa de todos fosse advogada por aquele único no qual existia, sem a culpa, a natureza de todos. Atiraram-se pois sobre a luz verdadeira os filhos das trevas e, embora usando tochas e lanternas, não escaparam à noite da sua infidelidade, porque não reconheceram o Autor da luz. Apoderam-se d’Aquele que estava preparado para ser preso e arrastam Aquele que queria ser arrastado e que, se quisesse resistir, nada poderiam as ímpias mãos para injuriá-lO: mas a redenção do mundo seria retardada, e, sem sofrer, a ninguém salvaria Aquele que devia morrer pela salvação de todos.
— II —
Deixando portanto que Lhe fizessem tudo quanto ousavam, sob a instigação dos sacerdotes, o furor popular, é conduzido a Anás, sogro de Caifás e em seguida, por ordem de Anás, (é levado) a Caifás. E depois das loucas acusações dos caluniadores, depois das imaginárias falsidades das testemunhas subordinadas, é transferido, por delegação dos pontífices, ao julgamento de Pilatos. Aqueles, com desprezo do direito divino, bradando que “não tinham como rei senão a Cesar”, (Jo. XIX, 15) como pessoas dedicadas às leis romanas, reservaram todo o julgamento ao poder do Governador, antes ansiando pelo executor da violência que pelo arbítrio da causa. Ofereciam Jesus amarrado por fortes laços, batido por numerosos tapas e socos, coberto de escarros, já condenado previamente pelos clamores, para que, no meio de tantos pré-julgamentos, Pilatos não ousasse absolver aquele que todos queriam condenar. O próprio processo mostra que nem ele encontrou culpa no acusado, nem tinha firmeza na sua opinião. O juiz condena a quem declara inocente, entregando o sangue do Justo ao povo iníquo; sangue do qual, pela sua própria inteligência e pelo sonho de sua mulher[4], sabia dever abster-se. O lavar das mãos não purifica o espírito contaminado e nem é expiado com a aspersão dos dedos o crime cometido com ímpia intenção servil. Excede a culpa de Pilatos o crime dos judeus que, aterrorizando-o com o nome de Cesar e excitando-o com palavras invejosas, provocaram-no à realização da sua maldade. Mas também não foge à culpa aquele que, superado pelas desordens, abandonou o próprio julgamento e participou no crime alheio.
— III —
Pilatos, diletíssimos, vencido pela loucura do povo implacável, permitiu que Jesus fosse insultado por muitos ludíbrios e vexado por desmedidas injúrias; à consideração dos perseguidores, mostrou-O espancado de açoites, coroado de espinhos e revestido com o manto de irrisória veste. Pensou que sem dúvida isso abrandaria os ânimos dos inimigos; que, saturados os ódios invejosos, já não mais julgassem dever ser perseguido Aquele que viam afligido de tantas maneiras. Mas, acendendo-se a ira dos que clamavam que soltasse Barrabás por indulgência e que Jesus sofresse a pena da Cruz, como se fosse dito em frêmito uníssono pelas turbas: “Sobre nós o seu sangue e sobre os nossos filhos” [5], obtiveram os inimigos para a sua própria condenação aquilo que exigiam pertinazmente. “Os seus dentes”, como testemunhou o Profeta, “eram armas e setas e a sua língua um gáudio acerrado”[6]. Inútil lhes era conter-se de crucificar com as próprias mãos o Senhor de majestade: atiravam-lhe os dardos letais dos gritos e as flechas envenenadas das palavras. A vós, a vós, ó pérfidos judeus, ó sacrílegos príncipes do povo, cabe todo o peso deste crime; e conquanto a ferocidade do atentado envolva também o Governador e os soldados, todo o conjunto do acontecimento vos acusa. E tudo aquilo que, no suplício do Cristo, ou foi erro de julgamento de Pilatos, ou complacência da corte, mais ainda vos torna merecedores do ódio do gênero humano, pois, pela insistência do vosso furor, nem foi permitido que ficassem inocentes aqueles que não se agradavam da vossa iniquidade.
— IV —
Como a cegueira dos infiéis judeus assim negasse ser seu rei o Senhor de todas as coisas, foi o Senhor Jesus entregue à vontade dos malfeitores e, para irrisão da régia dignidade, foi-lhe ordenado ser o portador de sua Cruz (para que se cumprisse o que previra o Profeta Isaías dizendo: “Eis que nasceu um menino e nos foi dado um filho que tem o império sobre os ombros”[7]. Portanto, quando o Senhor carregava o lenho da Cruz que converteria para Si em cetro de poder, diante dos olhos dos ímpios era isso uma grande irrisão, mas aos fiéis se manifestava um grande mistério, pois o gloriosíssimo vencedor do Diabo e debelador potentíssimo das forças inimigas, resplandecente de beleza,[8] carregava o troféu do seu triunfo; e trazia sobre os ombros com paciência inalterável o estandarte da salvação para a adoração de todos os reinos; como para fortalecer então, pela imagem da sua própria ação, todos os seus imitadores, dizendo: “Quem não toma a sua Cruz e segue-Me, não é digno de Mim”.[9]
— V —
Encaminhando-se então as turbas com Jesus para o lugar da execução, apareceu Simão, um certo Cireneu, ao qual foi transferido o lenho da Cruz do suplício, para que também por um tal fato fosse prefigurada a fé dos Gentios, para quem a Cruz de Cristo não seria vergonha, mas glória. Não foi coisa fortuita, mas figurada e mística que, assanhando-se os judeus contra o Cristo, aparecesse um estrangeiro para compadecer-se dele, segundo a palavra do Apóstolo: “Se compadecemos, também correinaremos”[10] para que ao opróbrio sacratíssimo do Salvador não fosse submetido algum hebreu ou israelita, mas um estrangeiro. Com efeito, por essa transferência também passava da circuncisão para o prepúcio, dos filhos carnais para os espirituais a propiciação do Cordeiro Imaculado e a plenitude de todos os sacramentos. Pois se “o Cristo foi imolado”, como diz o Apóstolo, “como nossa Páscoa”[11] que, oferecendo-Se ao Pai como novo e verdadeiro Sacrifício de reconciliação, não foi crucificado no Templo, cuja veneração estava acabada, nem dentro dos muros da cidade, que devia ser destruída em castigo do seu crime, mas fora das portas e do acampamento[12], isso foi para que, tendo cessado o mistério das antigas vítimas, uma nova hóstia fosse colocada sobre um novo altar e a Cruz do Cristo não fosse a ara do Templo, mas a do mundo inteiro.
— VI —
Considerando o Cristo exaltado pela Cruz, não ocorra à nossa mente, diletíssimos, só aquela visão que esteve nos olhos dos ímpios, a quem foi dito por Moisés: “E tua vida estará pendente ante teus olhos, e temerás dia e noite, e não crerás na tua vida”[13]. Vendo o Senhor crucificado, estes com efeito em nada puderam pensar senão no seu próprio crime, pois não possuíam o temor pelo qual a verdadeira fé se justifica, mas aquele pelo qual a consciência iníqua é torturada. A nossa inteligência, porém, que é iluminada pelo Espírito da verdade, recebe com puro e livre coração a glória da Cruz que resplandece no Céu e na terra. Com penetração profunda, veja a realização daquelas palavras do Senhor, quando falou sobre o transe da sua Paixão: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem”; e em seguida: “Agora a minha alma está perturbada, e que direi? Pai, livra-Me desta hora. Mas foi para isto que Eu cheguei até esta hora. Pai, glorifica teu Filho”. E como viesse do céu a voz do Pai, dizendo: “Já o glorifiquei, e ainda o glorificarei”, Jesus, dirigindo-se aos circunstantes, disse: “Não por minha causa essa voz se fez ouvir, mas por vossa causa. Agora é o julgamento do mundo, agora o Príncipe deste mundo será expulso. E quando Eu for elevado da terra, tudo atrairei a Mim”.[14]
— VII —
Ó admirável poder da Cruz! Ó inefável glória da Paixão! Nela o tribunal do Senhor, o julgamento do mundo, o poder do Crucificado. De fato atraíste tudo a Vós, Senhor, e tendo estendido os braços um dia inteiro para o povo infiel e negador que não acreditava em Vós e Vos contradizia, o mundo inteiro recebeu o senso para confessar a Vossa majestade[15]. Tudo atraíste a Vós, Senhor, quando, em execração da ignomínia dos judeus, todos os elementos proferiram a mesma sentença; quando, apagadas as luzes do céu e transformado o dia em noite, agitando-se a terra com movimentos insólitos, toda criatura se recusou ao uso dos ímpios. Tudo atraíste a Vós, Senhor, pois, tendo-se rasgado o véu do Templo, os Santos dos Santos se retiraram dos indignos Pontífices, para que a figura se transformasse na verdade, a profecia, na manifestação, e a Lei, no Evangelho. Tudo atraíste a Vós, Senhor, para que aquilo que era celebrado num único templo da Judéia, sob simbolismos obscuros, fosse celebrado em toda parte, pela devoção de todas as nações, num Sacramento pleno e sem véus. Agora, com efeito, é mais gloriosa a ordem dos levitas, mais ampla a dignidade dos anciãos, mais sagrada as bênçãos, a causa de todas as graças; por ela é dada aos crentes uma força tirada da fraqueza, uma glória do opróbrio, uma vida da morte. Também agora, tendo cessado toda espécie de sacrifícios carnais, a oblação única do Vosso Corpo e Sangue substitui toda a verdade das vítimas: pois Vós sois o verdadeiro “Cordeiro de Deus, Vós que tirais os pecados do mundo”[16]. E assim em Vós perfazei todos os mistérios, a fim de que, assim como um só é o sacrifício em lugar de toda vítima, seja também feito com toda nação um só reino.
— VIII —
Confessemos portanto, diletíssimos, o que com gloriosa voz confessou o Apóstolo São Paulo, bem-aventurado Mestre das Gentes, dizendo: “Fiel sentença e digna de toda aceitação é que o Cristo Jesus veio a este mundo salvar os pecadores[17]. É mais maravilhosa aqui a misericórdia de Deus para conosco, porque o Cristo não morreu pelos judeus nem pelos santos, mas pelos iníquos e ímpios; e como a natureza divina não podia receber o aguilhão da morte, nascendo de nós Ele assumiu aquilo que por nós podia oferecer (n.t.: uma natureza humana). Já de há muito, com efeito, o poder da sua morte ameaçava a nossa morte, como Ele disse pelo Profeta Oséas: ‘Ó morte, eu serei a tua morte; ó inferno, eu serei a tua perda!’. De fato Ele submeteu-se às leis do inferno, morrendo, mas destruiu-as, ressurgindo; e assim destruiu a perpetuidade da morte, fazendo-a de eterna, temporária. “Assim pois, como todos morrem em Adão, também todos serão vivificados no Cristo”. Faça-se portanto, diletíssimos, o que diz o Apóstolo São Paulo: “Que os que vivem já não vivam para si, mas para Aquele que morreu e ressuscitou por todos”, e como as coisas antigas passaram e tudo se fez novo, ninguém permanecerá na caducidade da vida carnal, mas todos, progredindo de dia para dia, renovemo-nos pelo aumento de piedade. Pois por mais que alguém esteja justificado, tem contudo, enquanto está nesta vida, por onde seja mais provado e melhor. Pois quem não progride regride; e quem nada adquire não deixa de perder alguma coisa. Compete-nos portanto correr pelos passos da Fé, pelas obras de misericórdia, pelo amor da justiça, a fim de que, celebrando espiritualmente o dia da nossa Redenção, “não com o fermento da antiga malícia e perversidade, mas com os ázimos da sinceridade e da verdade”, mereçamos ser participantes da Ressurreição do Cristo, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.
Reze a Via Sacra da Sagrada Face:
https://www.youtube.com/watch?v=AZgwGSEgiyo
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